sexta-feira, 8 de maio de 2020

Consciencia de ser velho


O ser humano, no seu percurso de vida desde o seu nascimento até á inevitável morte, passa por vários estádios.
Todos eles têm as suas formas próprias, variando, necessariamente com diversos factores de ordem social e que, em função disso, caracterizarão a qualidade de todo o percurso da própria vida.
Uma das fases que mais nos obriga a reflexões é sem dúvida a chamada terceira idade.
Por razões óbvias, a partir de determinada altura da vida, muitos  dos seres humanos poderão usufruir de mais tempo livre para, por assim dizer, viverem o que lhes resta da vida de uma forma calma e sem a necessidade imperiosa de continuação do que, anteriormente, foi uma vida de trabalho, com todas as preocupações daí resultantes.
Admitindo que a degradação física e mental se fará lenta, poder-se-á pensar que a compensação por uma vida inteira de canseira, poderá ser recompensada nesta fase da vida. No entanto e por mais que a ciência vá aumentando a chamada esperança de vida, inevitavelmente chegará o dia da partida.
A questão que se poderá colocar nesta fase, tem a ver com a consciência de cada um de nós em admitir a velhice com todas as suas contrariedades.
Assim sendo e com alguns exemplos que se nos têm deparado ao longo dos tempos, assistimos a pessoas com longos anos de vida e, no entanto, com uma actividade invejável, como se a idade tivesse parado para eles, (Fernando Pessa , Manuel de Oliveira, etc.).
Porém, a doença e por vezes as condições degradantes de vida de muitos, faz-nos pensar se ter consciência dessa mesma  vida será ou não uma vantagem.
Muitas vezes a demência, que notoriamente provoca mau estar a quem os rodeia, será porventura uma forma de que  a natureza se muniu para atenuar o sofrimento desses seres e, dessa forma, “amenizar”  o próprio sofrimento.

domingo, 19 de abril de 2020

O POMBO PRETO

                                                      
        
Tinha eu vinte anos e não tinha vinte “paus” no bolso, quando me aconteceu o que lhes vou contar.
Preocupava-me com o 1º ano de Letras, aos tombos com a Literatura Inglesa; tinha garantida a subsistência de um mês com a paternal mesada; possuía as solas do meu par de sapatos com promessas de longos dias de vida; vivia feliz e sem cuidados.
 Não tinha grandes dinheiros, comodidades eram normais e poucos luxos; mas tinha vinte anos, um coração alegre, 32 dentes afiados para o que desse e viesse ao prato, um estômago que digeria os alimentos de... empreitada, que me forneciam pernas de ferro e saúde do mesmo metal...Que mais se pode querer aos vinte anos?
E, para cúmulo da felicidade, tinha a janela das águas furtadas, janela cujas portas já não sabiam fechar-se, porque os gonzos, por falta de exercício, tinham perdido o movimento.
Não sei se, mais tarde, alguém se lembrou de curar aquela paralisia dos gonzos.
Que janela mágica!
Que noites de Julho passadas a essa janela em mangas de camisa, com as costas obstinadamente voltadas para o candeeiro e sobretudo para o compêndio, que adormecera aberto, desesperando de me fazer dormir a mim!
Por uma dessas noites, encostado ao peitoril, deixava eu errar a vista  pela floresta de chaminés, que se destacavam no ar, sobre os telhados das casas que dali se viam, e corria-me á rédea solta a vagabunda, “a folle du logis” – a imaginação, enfim.
Quem, depois de duas horas de meditação, poderá narrar por ordem, todas as loucuras, que me atravessaram o cérebro?
Ao cabo de longo cismar, os meus olhos começaram a contar as luxes que brilhavam como pirilampos, no fundo negro das casas.
Pouco a pouco essas luzes foram-se extinguindo, uma a uma, e ficaram apenas duas, em pontos diametralmente opostos e a enorme distância uma da outra.
A quem alumiarão? Serão costureiras? Pobres pequenas! Será desgraçado poeta, tão alheio ao século, ás voltas com uma estrofe? Serão mães, que velam filhos doentes, criminosos, a quem as trevas engrossam o remorso? Serão... o que quiserem ser! – bradei eu de repente, agarrando a tresloucada cabeça, que parava a tomar fôlego para novas correrias. Não há remédio! – disse eu, espreguiçando-me; e ia a  retirar-me da janela, quando vi que uma das luzes se movia.
Era meia-noite.
A luz continuou a mover-se e acabou por aparecer francamente à janela a que assomava um vulto, que eu não podia distinguir se era de homem, se de mulher.
Lançando instintivamente os olhos para a outra janela, notei o mesmo manejo de luz e verifiquei a aparição de outro vulto! Cheguei á conclusão que, decididamente, aquelas duas janelas entendem-se!
Estava eu estudando aquela telegrafia, quando um ligeiro ruído me chamou a atenção.
Investiguei o espaço e vi um pequeno ponto negro que se dirigia para mim.
Será um morcego?
Receoso do repelente contacto, recuei, mas o vulto negro, em vez de bater nos vidros da janela, entrou por ela dentro, esbarrando-se contra a parede fronteira, caindo de chofre sobre a minha cama.
Peguei no candeeiro que me iluminava o livro de estudo e caminhei um pouco para o presumível inimigo...
A luz espalhou-se sobre a cama.
Que lindo pombo preto!
E era, realmente, um lindo pombo-correio.
O pobrezinho estava tão cansado, que se deixou apanhar, sem reagir.
Pousei o candeeiro sobre a mesa e pus-me a analisar o visitante.
De repente, os meus dedos, introduzindo-se por baixo de uma das asas, encontraram um corpo estranho: era um papel atado por uma linha.
Apoderei-me do bilhete, apesar de duas picadelas  que o fiel mensageiro me deu, em defesa do que ele, naturalmente, considerava depósito sagrado.
Soltei o pombo, que voou para a janela, onde se empoleirou, e abri o bilhete.
Eis o seu conteúdo:

“ Elisa:
“ Foi mais um dia perdido!... Tudo se conspira contra nós e começo a perder a esperança de conseguir o que tua mãe exige de mim, para consentir a nossa felicidade”
“ Que mais te hei-de eu dizer, se, no pouco que ai fica dito, te causo uma noite de insónia e de lágrimas!?”
“ Adeus!... Amo-te – António”
Quem será este António?... E quem será aquela Elisa?... – perguntava eu, voltado para o pombo, que me mirava, espantado, com os seus olhinhos inteligentes. Deixo partir o “carteiro”... não deixo...
Comecei eu a dizer de mim para mim.
Acerquei-me da janela. Uma das luzes tinha desaparecido; a outra movia-se agitada por mão assustada e ansiosa.
Compreendo – “rosnei” eu. O senhor António escreveu aquela choradeira, mandou-a ao correio, fechou a janela, apagou a luz e já está a dormir como um porco, enquanto que a pobre da rapariga está ali a mirrar-se, desesperadinha, agitando o farol, na esperança de atraír o pombo transviado. Um atentado contra o direito das pessoas! Soltemos o pombo!...
Anda cá, pequenino – continuei, ameigando a voz para não o assustar. Tu terás fome?...
Dei-lhe de comer e não fez cerimónia. Em seguida bebeu um pouco.
Depois peguei nele, amarrei de novo o bilhete debaixo da asa, abri a janela e soltei-o.
Passados instantes, a luz retirava-se e desaparecia. A “mala” tinha chegado ao seu destino.
Só muito para a madrugada consegui adormecer.
Quando acordei e vi os restos do pão que tinha dado ao pombo, saltei da cama e corri à janela. Por mais que fiz, não pude dizer com certeza quais eram as casas em que vira brilhar as luzes.
Fiquei logo de mau humor. Vesti-me, almocei á pressa e fui para as aulas.
O professor chama-me, dou um estanderete monumental.
Raios partam o pombo!
Andei todo o dia de candeias ás avessas.
Á noite não  saí, e pus-me á janela.
Que grande azar!... Havia luz em todas as casas.
Esta cambada não tem sono! – pensava eu. Ide pr’a cama, imbecis!...
Afinal, como na véspera, as luzes foram-se sumindo uma a uma, e ficaram apenas as duas.
O pombo não vem... Foi um acaso do pombo... – dizia eu por entre dentes, em resposta à voz secreta que me dizia o contrário.
De repente, as luzes começaram a repetir a dança da véspera...
Subitamente, o pombo entrava sem hesitação e voava direito ás migalhas de pão.
Dizia assim a resposta da Elisa:

“António:
Não imaginas os transes por que me fez passar o nosso confidente!... Levou-lhe meia hora a chegar!...”
“ Se queres que te diga... Tenho hoje receio  de te escrever com a franqueza do costume, porque já pela demora, já pela maneira diferente por que vinha amarrado o teu bilhete, desconfio que o pombo foi detido na passagem...”

( Oh! Diabo! – exclamei eu, vendo-me descoberto).

“ Coragem, António!... Não desanimes!... A exigência da minha mãe é fundada num louvável sentimento de previdência...”
“ Pode levar tempo a realizar o nosso desejo,  mas... não temos nós confiança bastante um no outro?... Se o pombo se desviasse outra vez... Se alguém lesse isto...”
“ Nem me atrevo a escrever mais...”
“ Adeus! Amo-te – Elisa”
Pobre rapariga!... Compreendi o pudor daquela alma, ao saber-se devassada, mas... o mal estava feito.
Tornei a soltar o mensageiro.
No dia seguinte interceptei o seguinte bilhete:

“Elisa:
O pombo também na volta se demorou mais do que o costume.
Se é uma senhora quem se entrega ao mesquinho prazer de nos angustiar, espero que, ao ler estas linhas, se lembrará  que despreza todos os ditames da delicadeza.
Se é um homem, dir-lhe-ei que é ridícula essa curiosidade e criminosa por ser satisfeita na sombra e com a certeza da impunidade.
Esta mensagem, é mais para ser lida por quem interceptou as outras do que escrita para ti.

 – António.

O sangue tingiu-me as faces, a consciência aceitou a censura; mas eu tinha vinte anos que se viram contrafeitos e tive a cruel coragem de escrever na mesma carta de António as seguintes palavras:

 “Exmª Snrª:
Não sei se V.Exª gosta de pombo com ervilhas...
Ou V.Exª convence o António a contar-me o começo destes amores, a instruir-me sobre a educação dos pombos a voarem de noite, coisa que eu nunca vi antes, e a comunicar-me a exigência  de cuja realização depende o consentimento de sua Exmª mãe, ou, na volta do correio, depois de amanhã, mando comprar as ervilhas.”
No dia seguinte, o mensageiro reconduzia a carta de António, em que eu escrevera o que acima fica, sem um único comentário da jovem .
Elisa deixava a António a decisão de tão momentoso assunto.
Á noite recebia eu a seguinte carta do pobre namorado e mais uma vez trazida pelo pombo.

“Senhor

Juro que dava anos de vida para conhecer quem assim se atravessa entre duas almas que, receosa da terra e dos homens, se comunicam por intermédio da inocência de um pombo e através dos espaços do céu.”
“ O senhor foi cruel!...
“ Eu fui talvez inconveniente: devia lembrar-me que quem tem a coragem de forçar um segredo, mal poderia aceitar a censura que por tal abuso lhe fizessem...”
“ Andei mal, ando hoje pior em me mostrar independente, quando o amor e o sossego de quem amo me aconselham o papel de suplicante.”
“ Não posso!... Um sentimento, a que o senhor me parece alheio – a dignidade – não permite.”
“ Quer conhecer a história do nosso amor?... Vou contar-lha!

“ Leia.

“ Por uma amena tarde de Verão – haverá dois anos – estava eu no meu quarto, em convalescença de prolongada doença, quando, pela janela entrou o pombo que o senhor conhece.”
“ Aborrecido e buscando em vão distrair-me, atravessou-me uma ideia o cérebro.”
“ Ergui-me, fechei a janela e escrevi numa folha de papel:
“ Se, na casa onde a estas horas choram talvez a tua ausência, há uma mulher jovem e bela, leva-lhe os votos de ventura de um coração que ainda não amou!..
“ Agarrei o pombo e confiei-lhe a.. pieguice, que acaba de ler.”
“ No dia seguinte, com espanto meu, entrava o pombo, como na véspera, portador desta resposta:

“ Uma mulher jovem, a quem ainda ninguém disse que era bela, agradece a restituição do “Preto” cuja ausência lamentava e retribui os votos de ventura.”
“ Assim se travou uma correspondência que durou cerca de dois meses, sem que a palavra “Amor” fosse empregada de parte a parte.”
“ Ao cabo de dois meses, pedi á minha incógnita correspondente que me dissesse onde podia vê-la.”
“ Depois de muitas cartas trocadas, em que eu insistia e ela recusava, veio uma em que me marcava a missa das onze, no domingo seguinte e me daria sinais certos para a reconhecer.”

Fui.
“ Não posso descrever a ansiedade que me torturava!...”
“ E se era feia!?...”
“ Era, aliás, é uma formosura!”
“ Que doce prazer me arrebatava a alma, vendo-a ali , de joelhos, estudando ansiosa o rosto de todos os rapazes, sem me poder ver a mim, que a estava observando, encoberto pelo reposteiro!”
“ A missa acabou; ela ergueu-se, e, ao passar junto de mim, murmurei em voz abafada: “Obrigado!...”
“ Elisa não pôde reter  um pequeno grito; as faces tingiram-se-lhe de vermelho e, lançando-me um olhar entre assustado e curioso, aconchegou-se á mãe e saiu.”
“ Escusado é dizer que a segui.”
“ Começaram então a falar de amor as nossas cartas transportadas pelo pombo.”
“ Eu era contabilista de uma casa respeitável e tinha um ordenado subido.”
“ Entendi que não seria repelido, e encarreguei um amigo meu de pedir à mãe a mão da Elisa.”
“ A mãe acolheu-me perfeitamente, tratávamos já das  mil pequeninas coisas necessárias a quem põe casa, embora modesta, quando, haverá um ano, o comerciante que eu servia morreu de repente.”
“ Os herdeiros liquidaram o negócio e eu fiquei... e estou desempregado.”
Depois disso a mãe teve a seguinte conversa comigo:
“ António!... Sei que é um rapaz trabalhador e honrado, pois, se o não soubesse, não lhe daria a minha filha”
“ Sabe que só á força de economia consigo sustentar a ela e a mim, com a modesta pensão que recebo do estado?”
“ Enquanto o António não arranjar novo emprego, não é possível pensar em casamento.
“ E – continuou ela – perdoe-me o mal que vou fazer-lhe, mas é preciso que o António deixe de vir a minha casa.
“ Somos duas mulheres; o mundo é mau, pode este casamento não chegar a realizar-se...È preciso que deixe de vir aqui!”
“ Protestos, rogos, lágrimas, tudo tem sido baldado!”
“ A mãe da Elisa é inabalável e as minhas economias desaparecem, fazendo-me antever a miséria num futuro pouco distante.”
“ Aí tem a minha história!”
“ Faça o que entender!”
“ O pobre pombo contraiu relações novas... Depende de si roubar a duas almas, a única felicidade que lhes resta, fazendo desaparecer o único meio de comunicação que as liga.”
“ Não imploro, resigno-me! – António
Não é preciso explicar-lhes o remorso que senti!
Corri á mesa e escrevi o seguinte:
“ Perdão para os meus vinte anos!...”
“ Juro-lhe que o pombo  entrará no meu quarto e sairá dele, sem que a minha mão lhe torne a tocar!”
“ Peça ao António que me perdoe.”
No dia seguinte, “O Preto” entrava no quarto, trazendo dois bilhetes, amarrados por fora das asas.
Um deles dizia: -“ Para o desconhecido”
Abri-o avidamente e li esta única palavra: “ Obrigado!”
No dia imediato, o pombo igualmente dois bilhetes, presos da mesma forma.
Peguei no que me era dirigido e li:
“ O senhor é bom... Enganei-me... Perdoe-me!

 António

E o pombo continuou a vir todos os dias ao milho e ás migalhas.
Fiel á minha palavra, nunca mais tentei devassar os segredos confiados ao voo possante do “Preto” e só, de tempos a tempos, a oferta de uma flor ou uma palavra de gratidão vinham pagar-me a discrição.
Durante esse período da minha vida, costumava relacionar-me com uma família inglesa  onde o seu chefe era deveras meu amigo e, se mais vezes  não me aproveitava dos frequentes convites que me fazia, para ir jantar com ele e com, “miss” Alice, sua filha, era porque não queria tornar-me maçador.
Numa das várias vezes que visitei o senhor Gibson, este perguntou-me:
Você nunca assistiu a um funeral protestante?
Funerais não são do meu agrado...nem de ninguém. Respondi-lhe que não.
Pois se quiser, pode assistir hoje á tarde... Ás quatro horas enterra-se o meu contabilista, coitado.
Claro que não fui ao enterro. Era o que faltava.
Á noite estava no meu quarto a pôr uma gravata preta para visitar os meus amigos ingleses, quando o pombo entrou.
Chovia a cântaros, e o pobre do “Preto”, antes de comer os primeiros grãos de milho, sacudiu as penas três vezes e pareceu agradecer-me o carinho com que o acolhi no meu quarto.
Quando, passados minutos, o obriguei a partir e vi as duas luzes, não pude deixar de dizer:
Quanto tempo mais durará ainda aquele penar?.
Não virá um dia em que baste uma luz para ambos?...
Nisto tive uma ideia e, dando uma palmada na testa, exclamei:
Oh! Mas que ideia!
Fui-me deitar reconfortado com a ideia que tinha tido.
Ás quatro horas da tarde do dia seguinte, batia á porta do senhor Gibson.
O criado indicou-me que ele não demorava e que a menina Alice andava no jardim.
A nossa conversa cifrava-se, quase sempre, num esgrimir de ironias, tendentes a demonstrar a vantagem  que havia em ter nascido português ou inglês.
Apresentei-me a “miss” Alice com  desusada gravidade, pois que contava com ela, para realizar a ideia que me ocorrera na véspera.
Você que tem?... Hoje o seu aspecto é sério... quase inglês! – perguntou ela.
Estou muito triste – respondi eu.
Ora deixe-se disso que não me convence.
Contei-lhe a história inteirinha dos dois enamorados e do pombo, Ela, com o seu ar puramente inglês, só me disse: “ Schocking”!
Mas o que é que eu tenho a ver com essa história? – perguntou ela.
Ajude-ma numa boa acção!
Os olhos de Alice, até ali cravados no chão, ergueram-se radiantes, os lábios abriram-se e murmuraram simplesmente:
Diga!
Faça com que o seu pai contrate o António para o lugar de contabilista – respondi eu.
Oh! Que feliz ideia! Vou já falar com ele.
E partiu a correr, ligeira como uma gazela.
Já lhe falei! – disse ela passados quinze minutes.
Três dias depois, amarrava eu com  inexplicável prazer á asa do pombo, um bilhete nestes termos:
“ Pode o António apresentar-se aos senhores  Norris & Camp; Cª por quem será admitido como contabilista.
A carta, em que o António me participava que tinha sido admitido, terminava assim:
“ Graças a si, meu desconhecido amigo, antevejo um futuro de felicidade!... Escrevi à mãe da Elisa, e a senhora permite que lá vá hoje á noite e fixar o dia do nosso casamento,”
“ Sou completamente feliz, meu amigo!... Completamente, não. Não hei-de eu agora conhecê-lo? Já agora seja bom em tudo... Diga-me o seu nome!”
Consultei a “miss” Alice e proibiu-me terminantemente que me desse a conhecer. Agradava-lhe o mistério... Segui o seu conselho e recusei satisfazer o justo desejo do António e da Elisa.
Mr. Gibson, a pedido meu, proporcionou-me ocasião de ir ao seu escritório.
Perguntei pelo contabilista.
Era um rapaz com boa aparência e com ar de inteligente.
Retirei-me satisfeito com ele e comigo.
“ O pombo – seja dito em louvor da gratidão dos dois namorados, finalmente unidos – não deixou uma única noite de vir visitar-me, trazendo-me sempre palavras de reconhecimento.
Passado um ano, foi ele portador da seguinte mensagem:
“ Meu bom amigo!”
Informamo-lo que acabamos de ter uma filha e eu fiz voto de que não seria baptizada, se o senhor se recusasse a servir-lhe de padrinho... Responda, por favor! Elisa.
Tornei a ir consultar o meu ”advogado”,  a formosa inglesa.
E agora... Não há remédio! – respondeu ela.
O pombo “preto” foi portador do meu consentimento.
No dia seguinte, apresentava-me em casa de António e Elisa.
Oito dias depois, na igreja das redondezas, perguntava o abade:
Alice, “vis baptizari”?
E eu, padrinho, respondia :
“Volo”.
E o resto da assistência, respondia:
“Bolo”

E está acabada a história.

 P.S. – “O Preto” foi durante dois anos portador dos convites que me fazia o António e a Elisa para ir jantar com eles.

Numa dessas corridas, chegou a casa atordoado, voou duas vezes à volta do quarto deles e foi cair morto sobre o berço da pequenina, penhor da felicidade dos dois, felicidade que só a ele era devida.